Uma miséria esse mundo. Tive muitas impressões da viagem à ilha. Creio mesmo que minha vida poderia ser dividida entre antes e depois desse terrível passeio. Meu primeiro grande impacto foi sobrevoar a região do lugar e perceber a beleza natural que o caracterizava de modo absoluto. Contudo, olhando lá de cima, o que se via tanto na costa atlântica quanto no pequeno arquipélago eram mansões e mais mansões. Um outro país, pensei. Bastante distinto daquilo que vemos nos noticiários de TV e na paisagem mais trivial e maior de nossas grandes cidades.
Ao lado disso, estava a maneira como o capitão velhaco tratava seus comandados. Todos eles pareciam viver em torno de sua vontade, como devia acontecer em França dos derradeiros luíses. Bastava uma palavra comunicada por um apetrechozinho eletrônico e estavam todos a seu redor. Cheguei a conversar com duas das cozinheiras e percebi com que prazer se alegravam em serem absolutamente servis. Todos de uma docilidade impressionante para com o espertalhão. Docilidade esta que desaparecia por completo quando o canalha não estava por perto. Comigo, a sós, as empregadas foram sempre reticentes, respondendo a minhas indagações sobre culinária de modo monossilábico.
Com um empregado, na manhã em que abandonei desesperado o lugar, cheguei a ter um entrevero. Ao me ver subindo com mala e tudo sobre o barquinho de borracha, ele apareceu correndo e perguntando O senhor pediu licença ao capitão pra sair na lanchinha? Nesse momento, já eu puxava a cordinha e o motor começava a funcionar. Instintivamente, rumei a embarcação para a proa, acelerei e fiz-lhe um sinal indefectível, juntando polegar e indicador.
Quanta subserviência, meu Deus! Como estamos nesse mundo! Entregues a essa canalha de comandantes, capitães, diretores, almirantes, presidentes, políticos, altos burocratas, jornalistas influentes, prostitutas de luxo, professores autoritários, chefes, proprietários. Todos verdadeiros biltres inveterados. Radicais na arte de fazer com que sejam obedecidos, respeitados por não fazerem absolutamente nada, prestigiados por afundarem o país na mais ignóbil das misérias. Não há, definitivamente, dignidade entre essa choldra.
Há pouco, mencionei a França dos luíses. É isto mesmo. Sou ferrenho em acreditar que a situação que vivemos hoje só pode ser comparada à maravilha criada por Luís XVI. E todos sabem em que deu a arenga. Guilhotina para o monarca absoluto, guilhotina também para todos esses patifes tirânicos. Morte a todos, sem restrição alguma. Que cada uma das cabeças role impressionando o chão do vermelho mais rubro. Tudo para que minha rainha déspota possa, como eu, navegar num mar revolto e cinza. Um mar revolto e cinza que, pouco a pouco, iria tomando o tom mais escarlate, até transformar-se inteiro num oceano cinabrino.
Um oceano inteiro com o sangue dessa alcateia.
terça-feira, novembro 23, 2010
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3 comentários:
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Trata-se de um capítulo de meu romance "Quase Nada".
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