sábado, setembro 24, 2005

Sem alívio

Enquanto a mulher que amo dorme, estou aqui. Aproveitando um momento de intimidade própria, sentei-me à frente desta telinha e resolvi escrever sobre algo que me passou na tarde. Não é bem que tivesse decidido. A coisa veio a mim como uma necessidade. Algo capaz de justificar até mesmo a privacidade com que me regalo agora. Na verdade, sinto-me como se estivesse numa festa e me desse aquela vontade tremenda de me aliviar.

Então que saí discretamente, busquei um banheiro apropriado e me sentei ao vaso. O burburinho lá fora não foi interrompido, mas é imprescindível que me desligue por alguns instantes dele e faça aquilo que me é imprescindível fazer. Sei que a comparação é terrível, grotesca, mas creio que seu sentido escatológico acrescenta um significado metafísico àquilo que faço agora.

Escrevo exatamente como quem defeca. Busco a solidão e cada palavra despejada sobre a tela virgem me parece algo impuro, transgressor. Uma invenção que poderia até mesmo ser adiada se o desejo de alívio não fosse tão imperativo. Então, posso dizer que escrevo para acalmar as dores que me mexem por dentro. E também posso dizer que tal alívio é apenas temporário, pois logo o arroubo virá de novo e de novo e de novo.

Se pudesse, não escreveria. Não escreveria uma linha sequer e, assim, creio que estaria melhor. Mas não posso e, por isso, sentei-me aqui e devo escrever sobre algo que me passou pela tarde. E o que me passou esta tarde, vamos dizer logo de uma vez!, é que vim caminhando pela cidade de mãos dadas com o amor. As mãos bastante pegadas mesmo a umas outras mãos.

E, como isso estivesse acontecendo, senti medo, muito medo. Pavor de que aquelas mãos que no momento se davam às minhas fossem apartadas de repente. Pensei, então, que, por mais que tenhamos sido avisados do pecado, somos sempre destinados a ele. Como a Psiquê que, embora advertida pelo amante de que não poderia ver jamais seu rosto, não pôde deixar de ceder à tentação.

Arrebatada e entregue à perdição, Psiquê acendeu o círio e o levou ao rosto do amante para ver aquilo que lhe fora proibido ver. No entanto, se por um lado a interdição era apontada, por outro a transgressão também era inevitável. O destino de Psiquê já havia sido traçado e ela não poderia fazer mais nada. Paradoxalmente, a face revelada não traria o alívio pretendido.

E foi exatamente nisso que fiquei pensando com aquelas mãos entregues às minhas. Imaginei que, como a jovem e linda amante de Eros, eu também não pudera resistir à tentação e transgredira. Entreguei minhas mãos, aceitei as outras. E, caminhando pelo sol da tarde, pude enxergar a face poderosa e extraordinária do amor. Meu destino estava traçado. Eu não tinha culpa alguma nisso. E, também, não podia evitar.

Agora, meu amor dorme e eu, baldado, tento aqui me aliviar.

4 comentários:

Anônimo disse...
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Anônimo disse...
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Anônimo disse...

Adorei!!!
Você escreve muito bem!!!!!!!

E o girassol?


Bjos Raquel!
Tenha um bom domingo!! O=))))

Anônimo disse...

A gente não ama por opção, a gente ama por necessidade...
Torço pra que vc viva esse sonho lindo, mas sabendo que o amor é, em grande medida, uma ilusão...

desculpe-me se minhas palavras são pessimistas, mas é que o meu amor também o é.

seu destino será diferente... seu destino será um sonho sem despertar...

beijos