quinta-feira, setembro 15, 2005

A espera

Sinceramente, não me recordo onde li que Ulisses, o herói grego, arava a areia de uma praia deserta. No entanto, esta imagem ficou em minha cabeça de tal maneira que cheguei mesmo a utilizá-la num final de capítulo de minha primeira novela: Falar. Depois de escrever o texto, é claro que saí à procura do dicionário ou artigo em que havia encontrado tal alusão. Não achei. Mas ficou lá assim mesmo.

Ainda hoje, tal idéia – a de um homem arando algo que não faz sentido arar – não sai de meus pensamentos. O que me parece é que, de uma ou outra forma, o viril e astuto herói de Ítaca se redime de todas as guerras e mortes que pesam em suas costas ao cultivar a areia da praia. Posso até mesmo ver a figura consumida de um anĕr velho e cansado das batalhas de Tróia, ou de suas odisséias pela Trácia, enxugando o suor que lhe goteja do rosto tendo o Egeu como fundo. O lugar poderia ser a ilha de Éolo, e nosso herói parou apenas um instante, a fim de recuperar suas forças para voltar a correr a charrua pela parte da praia que ainda falta ser sulcada.

O que imagino é que, com esse trabalho trepidantemente estéril, Ulisses também tenha procurado se redimir dos longos anos em que deixou sua Penélope a tecer e destecer a mortalha de Laerte. A vida entre os casais, sobretudo hoje, em que os fios da harmonia parecem completamente perdidos da meada, revela-nos sempre algo desse Ulisses que lavra o infértil e dessa Penélope que espera fiando e desfiando.

Explico. Enxergar o outro, creio, é avistar-nos a nós mesmos. Esperamos do outro não aquilo que ele é, mas o que queremos que ele seja ou o que nós próprios gostaríamos de ser. Por isso, as odisséias nos relacionamentos. Por isso, o tecido que deve ser desfeito a cada noite. É para manter vivas suas esperanças de encontrar seu Ulisses que Penélope desfaz a mortalha que fiou. É para redescobrir sua Penélope que Ulisses lavra um solo que jamais poderá dar frutos. Então, e isso parece terrível, o que avistamos no outro é nossa própria esterilidade e, com medo dela, enlouquecemos na espera e no áspero.

No fundo, em cada circunstância de encontro, rogamos descobrir Penélopes e Ulisses. Mulheres capazes de arar o inútil e homens capazes de tecer o que no dia seguinte deverá ser refeito. Naquilo que buscamos, acredito que o que sempre irá durar é mesmo a chama essencial. Aquela chama que arde e que não vemos. Assim é o Ulisses que também espera, talvez para se redimir de quem por ele arou o impróprio. Assim, a Penélope que venceu guerras e moeu o áspero, talvez para se perdoar de quem por ela passou as noites desfiando. Assim, a espera. Assim, o amor. Arar, fiar, desfiar e amar podem ser mesmo aquilo para o qual não encontraremos nunca explicação.

E para o qual talvez não estejamos mesmo preparados.

2 comentários:

JT disse...

hola

Anônimo disse...

preciso processar o que acabei de ler...
mais trade volto com um comentãrio mais oportuno...